A Teimosa
Dia de sol mormacento, a chácara ficava no alto do morro, de onde se tinha uma vista de toda a cidade. Éramos quatro irmãos. Eu, a menor, a caçula, a rapa do tacho, como dizem por aí. O Túlio, que tinha três anos a mais do que eu. Depois, a Márcia, um pouco mais velha que o Túlio e por fim o Aurélio, o primeiro da fila, com uns quatorze ou quinze anos.
Eu, pequenininha, meio atarracada, tinha uma cabeleira ruiva que quase nunca via um pente e dizem que eu tinha um jeito muito dengoso, mas isso era maldade deles! É certo que eu tinha uma garganta de timbre bem agudo, que punha a correr o povo quando chorava. Braba também, do tipo que se emburra e fica assim durante horas. Mas, acho que minha marca registrada mesmo sempre foi a teimosia, coisa muito séria isso!
O Túlio sabia ser invocado, arteiro, medonho, foi o único que conseguiu fazer a mãe perder a paciência. Uma vez, ela "desceu o pau” nele com vontade, por conta de um tal de doce de pêras que ela fazia num tacho grande de cobre, daqueles que os ciganos vendem, ou vendiam, sei lá! Ele jogou terra e cascalho no doce, porque ela não lhe deu uma prova, mas... afinal, não estava pronto mesmo! É... O Túlio se especializou em ser assim, irritante, difícil. Fazia as pessoas perderem a calma.
A Márcia não, sempre circunspeta, “fechadona”, vivia lendo e estudando. Furiosa também, quando se invocava com alguém, sai de baixo, ficava semanas sem trocar palavra. Ela tinha uma relação muito próxima com a mãe, pois as duas tinham uma grande semelhança, “vinho da mesma pipa”, inclusive parecidíssimas fisicamente. A Márcia, meio dona da verdade, às vezes, se impunha bastante bem dessa maneira e sempre foi a minha maior aliada, meu "anjo da guarda", na linguagem popular. Foi ela quem me ensinou a caminhar nas rosetas, a pegar minhocas, pegar sapo e subir em árvores, uma pena que não me ensinou a descer também e por conta disso, um dia fiquei meia hora pendurada num galho, até a mãe ficar com pena e me tirar de lá. Mas aí, eu inventei meu próprio método de descer, pois já naquela época eu tinha um perfil autodidata e comecei a descer escorregando pelo tronco. É claro que quando chegava lá embaixo a barriga já estava em carne viva, mas quem liga! A gente foi criado no meio mato, acostumado a viver lanhado, mordido de borrachudo, sujo de barro e cheio de cicatrizes, que, de certa forma, nos davam orgulho.
Bom, mas voltando à Márcia, eu e ela tínhamos uma parceria muito grande, unha e carne como dizem por aí.
Depois tinha o Aurélio, meio bruto, um dia atirou um tijolão no meu pé e quando se pegava a tapa com o Túlio, nossa! Saía lasca! De vez em quando o Aurélio inventava umas brincadeiras pra lá de perigosas, tipo ficar pendurado numa corda como enforcado. Essa brincadeira ele e o Túlio adoravam fazer, a mãe ficava em pânico!
- Desce daí, guri! – Ela gritava desesperada.
O pai ficava apoiando.
- Deixa, Karina, ele tá só brincando, endureceu o pescoço, não acontece nada.
A mãe ficava indignada com o pai por conta disso.
- Tu ainda dá força pra essas coisas, Arnaldo! Depois se acontece alguma coisa, tu vai cuidá dele, vai?!
A outra brincadeira perigosa consistia em passar caminhando sobre as brasas do fogo de chão quando já estavam meio apagadas, acho que queriam provar a macheza deles, coisa daquele mundo em que a gente vivia, onde os homens tinham que ser os tais. O Aurélio sempre foi o mais competitivo de todos nós, talvez por ser o mais velho e por conta disso ser o mais exigido também.
A gente até que era feliz, correndo pela chácara ao ar livre, vivendo num mundo cheio de bichos, galinhas, vacas, cachorros, passarinhos que a gente pegava com arapuca. Andando pelo meio do mato, pescando na sanga. Não fosse pelo alcoolismo do pai, a nossa vida teria sido perfeita.
O pai no começo bebia pouco, mas depois que saiu do Partidão, se atirou de vez no vício, ele andou preso uns tempos em 64, mas não creio que tenha acontecido algo, senão a gente saberia, pois aquela cidade é um “cu”, com perdão da má palavra, mas lá todo mundo sabe da vida de todo mundo.
Acho que ele começou a beber demais foi por tristeza mesmo, ou doença, sei lá... Tentamos de tudo para ajudá-lo, mas sendo do tipo que não admite as coisas, homem macho, que não dá o braço a torcer, não foi capaz de aceitar ajuda! Aí, danou-se! O que mais a gente podia fazer?
Esquentado, ele metia medo lá na cidade e volta e meia puxava o 38 da cinta, mas cão que ladra não morde e nunca o vi dar um tiro em ninguém, aliás, sem minha mãe ele não seria nada, um merda de homem e isso eu lhe disse na “fuça” quando fiquei mais velha.
A máxima do meu pai se resumia numa frase: "Tá de má vontade, deixa!". E olha, tem umas horas que a minha origem se revela, mas paciência, quem sai aos seus não degenera, ao menos não sou pinguça, o que já é um avanço! Até em analista eu fui, pra revirar bem as tripas e não deixar nenhum resquício da loucura do pai em minha mente, mas sempre sobra alguma coisa e a gente tem que reconhecer que ele tinha lá suas qualidades e destas eu tenho orgulho. O maior problema foi a cachaça mesmo.
A Mãe, uma criatura equilibradíssima, foi quem segurou a peteca. Ela que efetivamente cuidava do bando. Enquanto a gente infernizava o dia inteiro ela lavava, passava, cozinhava, tirava leite e pra não dizer que a gente não fazia nada, de vez em quando botava a tropa a arrancar carqueja pra fazer vassouras.
Bom! Vamos ao que interessa, já dei descrição demais. O negócio é o seguinte, eu sempre fui um bicho pra lá de teimoso, do tipo que não baixa a cabeça nunca. Isso pode ser uma coisa boa, em algumas horas e ruim em outras, levei uma eternidade pra entender a ambivalência da coisa toda, dei muita marrada por aí até entender que o meio termo tem seu valor.
O fato é que eu, “nanica” ainda, não sei bem que idade tinha, devia andar lá pelos cinco ou seis anos, quis aprender a andar de bicicleta como a minha irmã andava, disse pra ela:
- Me ensina a andá na bicicleta grande.
- Bá! Aquela bicicleta era da vó, é pesadona. Os guris é que me ajudaram. Tu é muito pequena pra aprender naquela. Tinha que ser um triciclo pra ti.
Pra que ela foi me dizer aquilo! Foi como pólvora em mim. Um desafio! Aí me encarnei...
- Mas eu quero aprender! Eu consigo.
- Mas tem que ser os guris pra te ajudar, pois é pesado - disse ela - e sentenciou: - Tu vai caí e te machuca, depois a mãe xinga a gente.
Que merda isso! Eu era a filhinha da mamãe e a protegida do papai, aí eles tinham medo de me botar na fogueira e eu só queria ir pra fogueira!
Insisti tanto em aprender na tal bicicleta que ninguém mais suportava me ouvir. Até que um dia me revoltei e disse:
-Tá bom, vocês não querem me ensiná! Então, eu vou aprende sozinha...
Riram de mim os abobados, fiquei mais puta da cara ainda. Me chamaram de “batatona”! Aí sim, eu enlouqueci e fui à forra!
Peguei a bicicleta Monark do meu irmão, o Túlio, e me fui pra uma lomba que tinha na entrada da chácara. Embalava de lá de cima e ia cai não cai até lá embaixo e o meu freio era o barranco. Levei cada tombo de dar gosto. Mas quanto mais eu caia mais encanzinada eu ficava, fiquei nessa a tarde inteira, até que consegui andar uns três ou quatro metros em cima da bicicleta. Foi uma vitória pequena, mas eu não desisto fácil e voltei pra casa toda suja de graxa e de barro. A mãe enlouqueceu:
- Mas, olha só o teu vestido! - Só aí me dei conta do meu estado, havia destruído a minha roupa, ela ficou furiosa comigo, me deu um xingão daqueles!
No outro dia eu acordei cedo de novo e saí marchando depois do café, a mãe já estava meio impressionada com a minha obstinação e tentava me demover, mas o pai dizia:
- Deixa a guria, deixa ela fazer o que quer. – O pai sempre me defendia, eu, a caçula, né! Tinha que ter alguma vantagem em ser caçula, além de levar “cascudo” dos outros.
Fui de novo para um lugar onde não passava muita gente e fiquei o dia pedalando e caindo, pedalando e caindo, caía e levantava, pedalava mais um pouco e cada nova tentativa percorria distâncias maiores, até que por fim, no terceiro dia, consegui obter o equilíbrio necessário. Naquele momento uma sensação muito boa percorreu o meu corpo, que relaxou e ficou mais leve, uma sensação de vitória, vitória ante a minha “caçulice”! Naquele momento deixei de ser a pequenininha que todo mundo tinha que cuidar, “eu era mais eu”, podia fazer as coisas pelas minhas próprias pernas. Subi na bicicleta, queixo erguido e fui até em casa pedalando, fiz questão de passar na frente dos meus irmãos, que ficaram de boca aberta, surpresos.
- Olha só, a Scheila tá andando!... Dizia o Aurélio, com ar de espanto.
- Ué! Não é que tu aprendeu mesmo, Scheila! - Falou a Márcia, admirada e ao mesmo tempo orgulhosa de mim.
- É!... Mas, aprender na bicicleta pequena e mais fácil, barbada! Quero ver se ela tivesse que aprender na grandona que nem nós. – disse o Túlio, pra lá de despeitado.
- Mas aprendi na grandona! É melhor até!...- eu disse, irritada porque eles não reconheciam o meu feito.
- Hi! Não vem! Túlio! Ela aprendeu sozinha e isso vocês não conseguiram fazer. Nem na pequena tu andava sozinho, tá! - falou a Márcia me defendendo.
O Túlio, então, calou a boca, diante da incontestável verdade!