O Comunista
Galo cantando, raiar do dia, chegaram em jipes do exército, ameaçadores, armados, fardados, prontos para prender o comunista. Um pelotão inteiro, armado de escopetas. Bateram em todas as portas, cercando a casa. Não havia por onde fugir. O homem era perigoso, ateu, subversivo, financiado pela Rússia, talvez até canibal fosse. Era preciso deter este homem em nome do bem estar de todos e da pátria brasileira. Ninguém queria uma “cortina de ferro” por estas bandas.
Ouviu-se choro dentro da casa, uma das crianças acordou assustada com o barulho ensurdecedor que fez tremer as portas.
A porta se abriu e apareceu um homem pequeno, franzino, o comunista. A única coisa de grande e ameaçadora que havia naquele corpo era o olhar. Um olhar direto, incisivo.
Roberto acordou de seu sono com cinco milicos em seu quarto. Eles abriram a janela, despertando o menino que tinha apenas oito anos e o levaram calçado sob armas para a cozinha. Com certeza era perigoso também, nunca se sabe?!
Victor já sabia que seria preso, estava esperando por isso, não fugiu! Queria ficar ao lado da mulher e dos filhos, tinha medo por eles... Não sabia o que poderiam fazer, principalmente com os pequenos.
Abriu a porta e entregou-se, embora não soubesse qual seria o seu destino, estava preparado!
A pequena Letícia correu para as pernas do pai como sempre fazia quando ele sentava na poltrona da sala, mas encontrou uma expressão humilhada e acabrunhada que ficou gravada em sua mente infantil.
- Vai pra cozinha, com tua mãe – disse ele.
A criança sentiu a angústia na resposta e não entendeu o porquê daquele homenzarrão armado, vestido de verde, estar escarrapachado no sofá, como se fosse o dono da casa. Enquanto que seu pai estava tenso e com uma expressão angustiada no olhar.
Foi levada para a cozinha também sob armas, mas desta vez com o olhar cauteloso da mãe como proteção.
Quando o pai estava lá fora cercado pelos policiais, saiu correndo pela porta o comunistinha caçula, em suas perninhas bambas e curtas pisando nos coturnos dos soldados, e se foi atrás de Victor.
Romeu, sentindo aqueles pezinhos em sua bota de milico, olhou para baixo e viu um gurizinho com cara sapeca, mas meio assustadinho, o pobre! Desesperado pra se jogar nos braços do Pai! Puxa! Mas eles pareciam gente igual a todo mundo. Deu dó daquela criança, quase igual ao seu filho, irrequieto e cheio de sardas!
Margarida agarrou o menino, puxando-o para a cozinha, onde os soldados a confinaram enquanto revistavam a casa.
Ela estava calma, nessas horas não transparecia medo. Uma morena bonita, de olhar cigano, que passava uma sensação de fortaleza.
Reuniu os três pequenos na cozinha e fez até um café pra eles.
Apinhava-se na rua uma multidão de curiosos, queriam ver a cara do comunista, será que iam matá-lo ali mesmo? O povo gosta de sangue, era um acontecimento aquilo, ainda mais na monotonia daquela cidade.
Os milicos revistaram tudo, até o teto, à procura de armas. Subiram uns pelos ombros dos outros, usando a parede como apoio até o alçapão que dava para o forro. Só encontraram picumã, ratazanas e teias de aranha, mas ficou lá na parede branca a marca da sola da bota.
Recolheram uma papelada sem fim, em sua maioria notas de compra e venda da casa “secos e molhados” do velho Nicolau, pai de Victor. Enfiaram todos aqueles “panfletos subversivos” num saco de viagem da Dona Maria. Coitada da velha! Levaram o saco de viagem que ela nem tinha usado ainda.
Lá fora, os que ficaram na tocaia das saídas, se fartaram nas bergamoteiras. Apesar de serem bergamotas comunistas, estavam no ponto, dando água na boca.
Levaram livros com nomes estranhos: Trotski, Tolstoi, Tchekov, Gorki, com esses nomes não podiam ser boa coisa. O sargento, sujeito letrado, de profunda erudição, só deixou que ficasse um livro sobre economia, cujo título era “O Capital”, de Karl Marx.
Victor estava afastado do Partido já fazia algum tempo, decepcionado com as atitudes de Prestes e com a forma como as coisas eram conduzidas decidiu se desligar. Não acreditava na via pacífica para conquistar o poder, o “Tio Sam” não permitiria que se elegesse um governo de esquerda no Brasil. Tudo era manipulado, a imprensa, a educação, os fatos chegavam como meias verdades ao povo. Mas, também não apoiava os métodos de Stálin na União Soviética, a qual chamava de “A Ditadura Stalinista”. Não seguiu João Amazonas tampouco, convidaram-no para participar da guerrilha do Araguaia, mas isso para ele era uma utopia insana. Imaginem, meter-se no meio da selva, longe de tudo e de todos! Ficou à deriva, como muitos outros membros do Partido. Estava velho e cansado, tinha família e filhos, decidiu não se meter em aventuras.
Margarida, da cozinha, percebeu que os soldados iriam revistar o seu quarto e precipitou-se para lá.
- Não - disse o Sargento - A senhora fica na cozinha!
- Se vão revistar o meu quarto eu quero estar junto – e decidida, seguiu em frente, olhando o sargento nos olhos e o seu olhar quando estava indignada era uma coisa de fazer murchar as flores.
Romeu, admirado com a coragem dela, deixou-a caminhar por entre os soldados e em respeito àquela mulher magnífica, revistou pessoalmente o quarto, cuidando para colocar no lugar exato cada objeto que era mexido.
A soldadesca saiu comentando a atitude de Margarida. As outras estavam nervosas, aquela ali estava tranqüila. É lógico que ela fazia parte da coisa, não tinham dúvidas.
Roberto, o mais velho, viu quando levaram o pai para o pátio e o cercaram. Era um círculo tão fechado que se um disparasse a arma, mesmo sem querer acertaria o que estava em frente.
Victor, depois da revista minuciosa da casa, foi levado, na frente de sua mulher filhos.
Partiu, sem saber pra onde ia ou se um dia voltava, deixando três crianças pequenas e uma esposa grávida, sozinha em meio a uma multidão de curiosos.