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O Ronco do Rio

A água subia aos borbotões, o rio estava enchendo rápido. Os móveis já estavam cobertos de água, os brinquedos da neta boiavam de um lado para o outro na casa de madeira. Lá pelas tantas tiveram que subir para o telhado da casa. E a chuva, nada de dar trégua!

- Dona Leonor vamos, temos que subir no telhado, está muito perigoso aqui.

Dona Leonor, nos seus 90 anos, não tinha pernas para subir no telhado. Isso era para os jovens. Mas Letícia, a cuidadora, insistia. Até que conseguiu fazer com que fossem para a estrutura de ferro que sustentava o parreiral no pátio da casa. Isso era fácil, pois Letícia sabia nadar e foi puxando Dona Leonor até que chegaram na parreira, dava para alcançar a estrutura com os braços. Ela foi empurrando a velhinha do jeito que pode, pois era uma gringa forte, acostumada à lida da lavoura quando jovem. Foi de lá que saiu para ser cuidadora.

A pobre da velha se agarrou como pode na grade de ferro em meio as gavinhas de uva que sobraram. Nessa operação rasgou a blusa e o xale se foi pelas águas.

Era o final da tarde, a noite começava a cair. Ainda conseguiram ver alguns vizinhos no topo de uma casa, mas aos poucos a escuridão foi engolindo tudo.

Ficaram as duas lá naquela noite escura e chuvosa. A casa de madeira começou a balançar, a força da água estava minando as fundações. Passavam galhos, pedaços de tábua, móveis. Passou-se alguns minutos e a casa também se foi... Letícia sentiu um frio no estômago olhando a casa, sorte que não bateu na parreira, passou ao largo. Fincou uma das mãos em Dona Leonor, e outra na estrutura da parreira, onde trancou os pés também. A água estava subindo e já chegava à altura dos ombros.

- Dona Leonor! – disse Letícia gritando – se agarre bem! Não podemos cair!

O som da água era assustador, era como o ronco de um bicho monstro naquela noite escura. Volta e meia algum estrondo de algo que batia, ou caia. E não havia como ver do que se tratava.

Lá pelas tantas ouviram os latidos esganiçados de um cachorro sendo arrastado pelas águas. Pobre bicho! Quando ele passou perto da parreira Letícia, tateando na água em direção ao som, conseguiu pegá-lo pelo rabo, o bicho estava em pânico. Letícia colocou-o entre ela e Dona Leonor, de forma que ficasse bem seguro entre elas e a estrutura da parreira. O bicho ficou com meio corpo dentro d’água, mas parece que compreendeu que estava a salvo e se acalmou, aninhando-se entre as duas.

Passou cerca de uma hora e nada da chuva parar, o rio continuava enchendo. A parreira ainda era segura, mas não seria por muito tempo, já estavam com a água pelo pescoço.

Depois de umas duas horas a chuva diminuiu de intensidade. Ficaram ali ouvindo os sons do ronco do rio em meio a escuridão.

Ela e o cusco bem achado entre as duas.

Dona Leonor, apesar de seus 90 anos, estava firme.

A água fazia murchar os dedos, mas isso era um detalhe. A escuridão era mais assustadora. Letícia tinha medo de que algo batesse nelas e ficou na parte de dentro da estrutura da parreira, no sentido contrário da correnteza do rio. Protegidas pela estrutura poderiam sobreviver ao impacto.

Ouviam os pingos da chuva na parte da estrutura que ficara fora d’água. Tinham sede e fome, mas a adrenalina lhes dava energia. Letícia, por vezes, abria a boca para captar alguns pingos da chuva e dizia:

- Dona Leonor, vamos beber a água da chuva.

A velha, bem esperta, tratou de fazer o mesmo.

O tempo foi passando, já estava amanhecendo, pois começaram a ver o céu clarear. A chuva agora era fininha, miúda, estava arrefecendo.

Quando o dia clareou viram que em quilômetros não restara muita coisa, muitas casas tinham sido levadas, restaram escombros, o pedaço de um sobrado de material, uma torre com a caixa d’água. Ao longe viram alguns vizinhos em cima de um dos poucos telhados que ainda resistiam.

Dona Leonor pensava em seus filhos, o que teria ocorrido com eles?

De repente viram que um barco se aproximou de onde estavam, vinham resgatá-las. Ufa!

O homem do barco gritou:

- Vocês estão bem? Vamos tirá-las daí.

Letícia respondeu:

- Estamos bem sim.

Quando o barco encostou, o cachorro foi o primeiro que pulou para dentro, depois os dois homens que estava no barco colocaram Dona Leonor. A pobre da velha estava enxarcada e exausta.

- Venha moça, disse o outro bombeiro para Letícia.

Letícia subiu ao barco.

E lá se foram elas, Dona Leonor com sua cabeça bem alva, o cachorrinho com o pelo todo molhado e Letícia, com seu rosto exausto e braços doloridos de fazer força.

Chegaram à terra firme, finalmente estavam salvas! Não chovia mais, o sol estava alto.  

Trouxeram roupas secas para elas, que foram examinadas e encaminhadas para um estádio onde estavam colocando os desabrigados. Era uma fila de colchões e cobertores, alguns distribuindo comida em um canto. E muitas famílias com crianças, alguns chorando, outros catatônicos, em estado de choque. Haviam perdido tudo, só lhes restava a vida. Ficavam contando uns para os outros o horror que haviam vivido. E desde sempre isso acontecia naquela cidade, mas agora fora pior, mais violento, mais assustador, mais mortal.

Aquele dia foi pesado, era preciso enterrar os mortos. Os que haviam sido encontrados... O cemitério estava a salvo, pois era no alto da colina. E foi ali que enterraram a família Figueiredo, da qual não sobrou ninguém. Depois do enterro ficaram os montinhos de terra sem lápides ainda. Antes de voltar para casa vislumbrou as inscrições em um túmulo antigo de uma moça de 24 anos.

Pensou:

- Vou me embora daqui.

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