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O Soropositivo

O senhor tem um teste positivo.

   - Como assim?! – perguntou João, sentindo um calafrio percorrer-lhe a espinha.

   - Um dos testes deu positivo.

   - Qual o teste?

   - Essa informação eu não tenho, o Senhor terá que falar com a médica sobre isso, vou lhe encaminhar pra ela. – disse a atendente, sentindo pena dele que estava completamente branco de tão assustado.

   - É – disse João, sentindo o chão sumir sob os seus pés, era AIDS, ele tinha certeza pela forma como ela falava – e onde eu tenho que ir? – balbuciou.

   - Vou lhe encaminhar para a Doutora Circe, aguarde um minuto. – disse Suzana, a atendente, que se levantou e saiu com os exames de João na mão.

Quando entrou no corredor, as outras auxiliares vieram ao encontro dela, perguntando:

   - Esse é o tal do João? – pois já sabiam do paciente soropositivo.

   - É, é ele sim – respondeu Suzana contrariada, afinal o que tinham elas a ver com isso.

E não lhes deu mais assunto, mas mesmo assim elas ficaram espiando pela fresta da porta para ver bem a cara do “condenado”.

João ficou ali sentado na recepção sentindo o sangue fluir e refluir em seu corpo, as batidas do seu coração jovem se aceleraram, como aquilo podia estar acontecendo com ele, como?! Não era possível, ele tinha 18 anos e uma vida para viver.

Ele ficou ali sentado esperando e fixando um ponto no vazio, com seus grandes olhos azuis, numa preocupação infindável. Seu rosto exótico, de pomos salientes e traços marcantes, estava completamente alterado pela tensão. Passados alguns minutos, a atendente voltou e lhe disse:

    - Pode passar, a doutora está esperando.

Ele entrou por um corredor estreito cheirando a desinfetante hospitalar, que de tão forte chegava a arder no nariz. João entrou na sala e viu uma médica com cabelos desgrenhados, cujo aspecto em nada condizia com o local.

   - João da Silva? – perguntou a Doutora Circe.

   - Sim - disse João.

   - Sente-se. – falou a médica estendendo a mão para cumprimentá-lo.

João sentou-se ansioso, seu coração batia acelerado, o ar entrava com dificuldade em seu corpo tenso e rígido. Não quis perguntar nada, tinha medo da resposta. Sentou-se e ficou olhando para a médica à espera do veredicto.

    - Pois é, um dos teus exames deu positivo.

    - Qual? – indagou ele, mal podendo formular a pergunta.

A médica mediu João de cima a baixo, percebendo que o pânico tomava conta do seu corpo. Então preparou-o:

    - Muitas vezes o primeiro teste pode ser um falso positivo, isso acontece. Para ter certeza é melhor a gente repetir o exame.

    - Que exame? – perguntou de novo João, sentindo um fio de esperança nascer em seu corpo, nem tudo estava perdido.

    - SIDA, mas tu podes, como eu te disse, estar apenas apresentando um falso positivo, é preciso ter certeza.

    - SIDA é AIDS? – perguntou ele quase tonto com o que ouvira.

    - Sim. É. Mas, a gente não pode se precipitar. Vamos repetir o exame primeiro.

    - Certo, Doutora. - concordou ele, pois já não atinava mais nada.

A médica levantou-se e examinou os braços de João com a delicadeza de alguém que está acostumado a lidar com a dor humana. Não havia picadas em seus braços. Perguntou-lhe então:

     - Tu achas que te expôs a alguma situação de risco?

     - Não, eu não creio, Doutora, não sou promíscuo, nem uso drogas. Estou quase casando com minha namorada.

     - Fizeste alguma intervenção onde utilizaste sangue?

     - Não, doutora. Sempre tive uma excelente saúde. Nunca precisei de intervenção alguma.

     - Pelo que vejo, estás servindo não?!

     - Exatamente, e tinha vindo aqui para doar sangue junto com meus colegas. Uma coisa bem comum no quartel.

     - É, eu sei.  Fique tranqüilo, então, João, isto deve ser um falso positivo, vamos repetir o exame, vou te encaminhar para a coleta.

E gentilmente o conduziu para uma nova coleta no laboratório. Ele fez o novo exame e saiu completamente atordoado, indo direto para casa. Quando estava chegando deu de cara com a namorada, que percebeu que seu ar esquisito, inquirindo-o:

    - O que tu tem? Aconteceu alguma coisa?

    - É, aconteceu sim – disse João, pois sentia que ia explodir se não falasse isso para alguém.

    - O que foi, João?

    - Nada. Me deixa Maria. – disse ele, dando-se conta que não poderia prever a reação da namorada diante daquilo.

    - Como, nada! Começou agora termina. Eu tô vendo que tu não tá bem, esqueceu que te conheço há anos?

    - Se tu me conhece sabe que pode confiar em mim, não sabe?

    - É claro que sei, tu tá me assustando João, desembucha de uma vez.

    - É que tenho medo da tua reação, não sei como te dizer isso.

    - Olha só, a gente se conhece desde criança e tu sabe que pode contar comigo nas horas boas e nas ruins. Já te disse que vou abraçada contigo até o inferno se for preciso.

João sorriu com as palavras dela, como era bom ouvir aquilo, sentiu-se mais aliviado, mais seguro.

    - OK, Maria, vou te contar, mas não pense que eu te traí ou que fiz algo nas tuas costas. Eu sô essa pessoa que tu conhece e sabe bem quem é. Na verdade tô muito espantado com o que tá acontecendo.

    - Fala, criatura, não me deixa mais apreensiva do que já tô.

   - Outro dia fomos chamados para doar sangue lá no quartel. Eu fui junto com seis colegas. Hoje me chamaram no hospital pra dizer que um dos testes que eles fazem no sangue da gente deu positivo.

   - É!- disse Maria, sentindo a pernas afrouxarem – E qual? – perguntou, com o coração apertado no peito.

   - Olha, Maria, eu não sô “bicha”, também não sô chegado em drogas, tu sabe disso. E só transo contigo, pode ter certeza.

   - Qual o exame deu positivo? – disse Maria, quase gritando.

   - AIDS, Maria. AIDS...

Um silêncio estranho pairou no ar, os dois se olhavam firmemente nos olhos, ambos assustados, ambos com medo. João, sentindo a confusão e o pânico da namorada, rapidamente complementou:

   - Mas a médica disse que pode ser um falso positivo e disse que vai repetir o exame, já coletei de novo o sangue. Ela falou que às vezes no primeiro exame pode ocorrer isso.

Maria, nada dizia, ficou ali muda e parada olhando pra ele, pensando que não conhecia aquele homem. Como ele pudera fazer isso com ela? Será que ela estava com AIDS também? Estava tão mergulhada no seu pavor que nem ouviu direito as últimas palavras de João.

Ele tentou abraçá-la, ela recuou repelindo-o instintivamente, como quem se protege do perigo. João sentiu uma punhalada no seu coração quando ela fez isso, suportaria tudo, menos a rejeição dela. Não ela. Aquilo doeu tão fundo que ele ficou com um nó embolado na garganta.

      Depois de alguns minutos assim, cada um no seu canto, ruminando sua dor, Maria perguntou-se em voz alta:

      - Será que eu tenho AIDS também?!

João não reconhecia mais a namorada, ela parecia uma estranha pra ele. Ela acusou-o, desta vez, quase gritando.

      - Como tu pode fazer isso comigo?!!!

Ele não compreendia aquilo e ficava olhando assustado e surpreso pra ela, afinal o que ele tinha feito?

     - Eu não quero morrer – desabou a chorar Maria. – como tu pode fazer isso comigo?! E agora, o que é que eu faço?

João tentou agarrar a mão dela, queria consolá-la, protegê-la, mas ela se esquivou dele, tinha medo de tocá-lo. Pra ele aquilo foi um segundo golpe surdo no peito. Sentiu-se um nada, um resto de gente, um rato, um lixo. Então, era assim que as pessoas agiam. Esse era o mundo da humanidade. Juravam amor eterno e depois isso. Não disse mais nenhuma palavra, apenas olhava pra ela como quem olha para alguém que não nunca viu antes, enquanto ela ficava ali se queixando, chorando, como se fosse uma vítima do mundo. Até que ela se levantou, olhou com ódio os olhos de João, pegou a bolsa e saiu pela mesma porta pela qual sempre entrara.

      João ficou mudo e estático olhando o vazio, como quem não vê mais sentido nas coisas. Passou à noite enroscado num canto como se fosse um feto. Não chorava, não tinha lágrimas, apenas uma coisa dura em seu peito, um ódio frio e surdo. Perdeu a ilusão com as pessoas, com a vida. Andou assim, como uma sombra, por cerca de uma semana. A vida para ele tinha parado, era como se o tempo estivesse suspenso. Já não comia mais direito e passava as noites em claro ruminando seus pensamentos. Até que um dia, quando a manhã já ia pelo meio, o telefone tocou. Mecanicamente ele atendeu.

   - Alô  – disseram do outro lado da linha.

   - Sim – respondeu João, mecanicamente.

   - Eu gostaria de falar com o Sr. João.

   - Pois não – retrucou ele, como um robô.

   - Aqui é do Hospital Progresso, vou lhe passar para a Doutora Circe – disse a telefonista.

   - Ok. – respondeu João e ficou esperando apreensivo por alguns instantes. Até que a voz da médica de cabelos desgrenhados soou do outro lado da linha.

   - Oi, João, tenho uma boa notícia pra você.

   - É mesmo! – disse ele em tom metálico.

   - Corri pra lhe ligar, pois achei que você precisava ouvir esta notícia.

   - Pois não, Doutora.

   - Olha, não é praxe do hospital dar resultados por telefone, mas neste caso vou abrir uma exceção, teu segundo teste deu negativo. Fique tranqüilo, tu não é um soropositivo.

   - Verdade! – disse ele.

   - Verdade verdadeira, João. Vou deixar o exame a tua disposição, se depois quiseres pegar.

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